Guia do Bonde - este texto foi publicado
no Rio de janeiro em janeiro de 1938, mas suas recomendações podem ser
estendidas a todos os usuários de bonde. A Light, empresa estadunidense que o
texto se refere, era a detentora das ações de diversas companhias de transporte
brasileiras.
O
bonde nada tem de bond...oso. é pesado, intransigente, tem um caráter tão firme
que não recua sem muito refletir nem pedir licenças aos colegas que vêm
correndo na cauda. É claro que com um bicho desse tamanho (tamanho de um bonde)
é preciso que quem o toma se porte com a necessária precaução se quiser voltar
para casa com os ossos no lugar em que a natureza os colocou, de acordo com os
tratados de anatomia.
2º -
Saltar do bonde em movimento – coordenar os próprios movimentos com os do bonde
é uma ciência tão complicada que o próprio Einstein deixou de estudar, com
receios das conseqüências nas experiências. A força da inércia costuma divertir-se
à custa da humanidade. O passageiro quer chegar antes do bonde não se conforma
com poucos segundos de espera voaria por cima do motorneiro. Agacha-se
afoitamente ao balaústre esquece certo reumatismo, não tem tempo de resolver
certos cálculos de probabilidade não olha se o lugar onde vai por os pés é
asfalto, paralelepípedo, uma poça d’água ou casca de banana. E salta. Em vez do
pé chegou primeiro o nariz esborrachou-se como mamão maduro e se não levantar
logo a carcaça do lugar logo vem um auto para realizar a autópsia. Não se
esqueça nunca, num caso desses, de fazer testamento para que os herdeiros
possam abençoar sua providencial imprevidência.
3º -
Tomar bonde pelo lado da entrelinha – esta é uma surpresa que o passageiro
costuma fazer ao bonde o qual retribui com outra, muito mais agradável embora
só se preocupe com a direita. À esquerda há uma barra, mas o passageiro não
admite ser barrado, arma ou pulo... errado para a longarina que está suspensa
falseia o pé e ao mesmo tempo bate com a caixa do juízo na barra, que não é a
do Rio, mais um diacho de travessão duro como cama de pobre. Resultado: o pé
tonteou, a cabeça levou uma luxação no tornozelo e em torno o zelo dos que
assistiram ao delicioso trombalhão não o livra de entregar os cacos à
Assistência para que o solde deixando-o pronto para outra. Pode-se dar também,
o caso de um estatelamento no trilho, no justo momento em que um bonde
bagageiro avance em sentido inverso e emende e complete o desastre com uma
decapitação magistral ou amputações dignas do mais afamado cirurgião.
4º -
Atravessar a linha – há gente neste mundo esquisito que não se satisfaz com a
calçada quer palmilhar os trilhos, arremedando o burro entre os varais ou
acompanhando a predileção que tem os chaufeurs
pra meter as rodas do carro sobre os trilhos. Sente o gostinho de atravessá-los
com a pachorra de um paquiderme em plena jungle
sem cuidar da esquerda, da direita, das piscadelas do sinaleiro e dos carros
que se cruzam. Os pés estão nos trilhos, mas o pensamento vagueia entre as
nuvens da cordilheira dos Andes. Ficou surdo, cego e mudo, ouvira com agrado o
tímpano duma porta de cinema e não a do motorneiro.
Fica tão desprendido que o
bonde, passando ainda mais o desprende uma perna pra cá, outra pra lá, a cabeça
foi com a roda e no chão talvez ficasse intacto um ovo, destinado a outro
gênero de fritada.
Num caso como esse a
Assistência não tem interesse em intervir.
5º -
Os pingentes – é a consequência de falta de lotação efetiva. Dividimos esse
lote de passageiros em duas classes a saber:
1- Pingente proposital –
há lugar, mas ele prefere ser o parente... colateral da pequena que está na ponta
do banco.
2- Pingente especial – é
um caso clínico. Ele sofre de certa moléstia que o impede de sentar-se,
moléstia essa que chamaremos de assentopatia, em lugar de outro nome impróprio.
Este caso de pingente é também pungente.
Para estes dois casos o
perigo é o mesmo. Está o pingente de pé pode cair sentado no asfalto, ou em
última análise de pernas para o ar, se não fizer caso do clássico grito do
motorneiro: "olha à direita".
Algum veículo arranca-o da
contemplação dá-lhe o tranco algum poste fora alinhamento o reduz em postas
difíceis de se alinhar.
Esbarros, trancos,
solavancos, trombalhões, costelas quebradas são casos de somenos importâncias,
voam embrulhos chapéus, guarda-chuvas, pastas, relógios, chaves com ou sem
molhos, carteiras com ou sem elas. O reboque encarrega-se de apanhar somente o
freguês e com pingente o espetáculo torna-se compungente.
O castigo da traseira
devia ser aplicado pelos pais com um tamanco bem resistente.
Em casos especiais é a
própria traseira do bonde que se encarrega de dar com a dita do garoto no duro
asfalto ou num monte de pedras. Os garotos preferem emendas nas calças, mas não
se emendam. O carro que vier reduzi-los a uma indigesta fritada.
Como você vê, temos que
recorrer a uma escandalosa comparação de Deus com o perigo. Está em toda a
parte. Enquanto a Light não inventar
bondes e ônibus
|
de fumaça, temos que andar
com muitas precauções se não quisermos tomar certos bondes especialmente
recomendados para os imprudentes o do Caju e o outro de São João Batista.
Para evitar o atropelo
precisa ter outro "pelo", muito "pelo" mesmo não ser surdo,
nem cego, ainda menos tonto, distraído, apaixonado, apressado e saber dar à
própria vida preço maior que o da passagem do bonde que se tomar.
Ou a Light me agradece estes conselhos gratuítos à sua freguesia ou
então farei o voto de andar sempre a pé... pelos telhados.
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