segunda-feira, 4 de março de 2013

O Guia do Bonde



Guia do Bonde - este texto foi publicado no Rio de janeiro em janeiro de 1938, mas suas recomendações podem ser estendidas a todos os usuários de bonde. A Light, empresa estadunidense que o texto se refere, era a detentora das ações de diversas companhias de transporte brasileiras.

O bonde nada tem de bond...oso. é pesado, intransigente, tem um caráter tão firme que não recua sem muito refletir nem pedir licenças aos colegas que vêm correndo na cauda. É claro que com um bicho desse tamanho (tamanho de um bonde) é preciso que quem o toma se porte com a necessária precaução se quiser voltar para casa com os ossos no lugar em que a natureza os colocou, de acordo com os tratados de anatomia.
Mas, toca o bonde... isto é, vamos ao nosso guia:
- O transeunte tem pressa – se tem pressa, terá pressa também de morrer. Se não quiser esperar que o bonde chegue ao poste de parada e fique imóvel, é o passageiro que ficará imóvel embaixo dele. O fato de agarrar-se ao balaústre quando nunca se aprendeu ginástica ou não se possui uma elegante cauda pênsil orgulho dos macacos, implica a idéia de se agarrar ao braço da Morte. O arranco é dos mais sensacionais e vale a pena assistir o desfraldar de um corpo humano como bandeira agarrada ao pau sacudida pelo vento, descrever linda parábola de geometria no espaço da volta completa e estabelecer–se no asfalto de preferência com a cabeça de onde logo, pela brecha inevitável, vão se escapando como os pombos do soneto as idéias de misturar com a tal massa cinzenta (se a tiver). Quando isso não acontece, reboque transforma-se em rabecão. A família irá procurá-lo no necrotério. Se o bonde já partiu do poste, o acidente não varia, pois são as costelas que serão escolhidas. Se o passageiro for mulher haverá mais costelas para quebrar. 

- Saltar do bonde em movimento – coordenar os próprios movimentos com os do bonde é uma ciência tão complicada que o próprio Einstein deixou de estudar, com receios das conseqüências nas experiências. A força da inércia costuma divertir-se à custa da humanidade. O passageiro quer chegar antes do bonde não se conforma com poucos segundos de espera voaria por cima do motorneiro. Agacha-se afoitamente ao balaústre esquece certo reumatismo, não tem tempo de resolver certos cálculos de probabilidade não olha se o lugar onde vai por os pés é asfalto, paralelepípedo, uma poça d’água ou casca de banana. E salta. Em vez do pé chegou primeiro o nariz esborrachou-se como mamão maduro e se não levantar logo a carcaça do lugar logo vem um auto para realizar a autópsia. Não se esqueça nunca, num caso desses, de fazer testamento para que os herdeiros possam abençoar sua providencial imprevidência.

- Tomar bonde pelo lado da entrelinha – esta é uma surpresa que o passageiro costuma fazer ao bonde o qual retribui com outra, muito mais agradável embora só se preocupe com a direita. À esquerda há uma barra, mas o passageiro não admite ser barrado, arma ou pulo... errado para a longarina que está suspensa falseia o pé e ao mesmo tempo bate com a caixa do juízo na barra, que não é a do Rio, mais um diacho de travessão duro como cama de pobre. Resultado: o pé tonteou, a cabeça levou uma luxação no tornozelo e em torno o zelo dos que assistiram ao delicioso trombalhão não o livra de entregar os cacos à Assistência para que o solde deixando-o pronto para outra. Pode-se dar também, o caso de um estatelamento no trilho, no justo momento em que um bonde bagageiro avance em sentido inverso e emende e complete o desastre com uma decapitação magistral ou amputações dignas do mais afamado cirurgião.
- Atravessar a linha – há gente neste mundo esquisito que não se satisfaz com a calçada quer palmilhar os trilhos, arremedando o burro entre os varais ou acompanhando a predileção que tem os chaufeurs pra meter as rodas do carro sobre os trilhos. Sente o gostinho de atravessá-los com a pachorra de um paquiderme em plena jungle sem cuidar da esquerda, da direita, das piscadelas do sinaleiro e dos carros que se cruzam. Os pés estão nos trilhos, mas o pensamento vagueia entre as nuvens da cordilheira dos Andes. Ficou surdo, cego e mudo, ouvira com agrado o tímpano duma porta de cinema e não a do motorneiro.
Fica tão desprendido que o bonde, passando ainda mais o desprende uma perna pra cá, outra pra lá, a cabeça foi com a roda e no chão talvez ficasse intacto um ovo, destinado a outro gênero de fritada.
Num caso como esse a Assistência não tem interesse em intervir.
Pede-se logo o rabecão põe-se tudo num saco e manda-se para o Caju. Pêsames à família enlutada. Missa de sétimo dia etc.
- Os pingentes – é a consequência de falta de lotação efetiva. Dividimos esse lote de passageiros em duas classes a saber:
1- Pingente proposital – há lugar, mas ele prefere ser o parente... colateral da pequena que está na ponta do banco.
2- Pingente especial – é um caso clínico. Ele sofre de certa moléstia que o impede de sentar-se, moléstia essa que chamaremos de assentopatia, em lugar de outro nome impróprio. Este caso de pingente é também pungente.
Para estes dois casos o perigo é o mesmo. Está o pingente de pé pode cair sentado no asfalto, ou em última análise de pernas para o ar, se não fizer caso do clássico grito do motorneiro: "olha à direita".
Algum veículo arranca-o da contemplação dá-lhe o tranco algum poste fora alinhamento o reduz em postas difíceis de se alinhar.
Esbarros, trancos, solavancos, trombalhões, costelas quebradas são casos de somenos importâncias, voam embrulhos chapéus, guarda-chuvas, pastas, relógios, chaves com ou sem molhos, carteiras com ou sem elas. O reboque encarrega-se de apanhar somente o freguês e com pingente o espetáculo torna-se compungente.

- A traseira – é o sistema especial dos garotos tomarem a traseira dos bondes.
O castigo da traseira devia ser aplicado pelos pais com um tamanco bem resistente.
Em casos especiais é a própria traseira do bonde que se encarrega de dar com a dita do garoto no duro asfalto ou num monte de pedras. Os garotos preferem emendas nas calças, mas não se emendam. O carro que vier reduzi-los a uma indigesta fritada.
Como você vê, temos que recorrer a uma escandalosa comparação de Deus com o perigo. Está em toda a parte. Enquanto a Light não inventar bondes e ônibus
de fumaça, temos que andar com muitas precauções se não quisermos tomar certos bondes especialmente recomendados para os imprudentes o do Caju e o outro de São João Batista.
Para evitar o atropelo precisa ter outro "pelo", muito "pelo" mesmo não ser surdo, nem cego, ainda menos tonto, distraído, apaixonado, apressado e saber dar à própria vida preço maior que o da passagem do bonde que se tomar.
Ou a Light me agradece estes conselhos gratuítos à sua freguesia ou então farei o voto de andar sempre a pé... pelos telhados.




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