Enciclopédia Nosso
Século (Editora Abril Cultural, S.Paulo, 1980, vol. I):
Ocorreu-me compôr umas
certas regras para uso dos que frequentam os bonds.
O desenvolvimento que tem
tido entre nós este meio de locomoção, essencialmente democratico, exige que
elle não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais
do que alguns extractos do meu traalho; basta saber que tem nada menos de
setenta artigos. Vão apenas dez.
Art. I - Dos Encatarrhoados - Os encatarrhoados podem entrar nos bonds, com a
condição de não tossirem mais de trez vezes dentro de uma hora, e no caso de
pigarro, quatro.
Quando a tosse for tão
teimosa que não permita esta limitação, os encatarrhoados têem dous alvitres: -
ou irem a pé, que é bom exercicio, ou metterem-se na cama. Também podem ir
tossir para o diabo que os carregue.
Os encatarrhoados que
estiverem nas extremidades dos bancos devem escarrar para o lado da rua, em vez
de o fazerem no proprio bond, salvo caso de aposta, preceito religioso ou
maçonico, vocação etc., etc.
Art. II - Da Posição Das Pernas - As pernas devem trazer-se de modo que não
constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se prohibem formalmente as
pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazel-os
occupar por meninas pobres ou viuvas desvalidas mediante uma pequena
gratificação.
Art. III - Da Leitura Dos Jornaes - Cada vez que um passageiro abrir a folha que
estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem
levar-lhes os chapéos; também não é bonito encostal-o no passageiro da frente.
Art. IV - Dos Quebra-Queixos - É permitido o uso dos quebra-queixos em duas
circumstancias: - a primeira quando não for ninguem no bond, e a segunda ao
descer.
Art. V - Dos Amoladores - Toda a pessoa que sentir necessidade de contar
os seus negocios intimos, sem interesse para ninguem, deve primeiro indagar do
passageiro escolhido para uma tal confidencia, se elle é assaz christão e
resignado. No caso affirmativo, perguntar-lhe-ha se prefere a narração ou uma
descarga de ponta-pés; a pessoa deve immediatamente pespegal-os.
No caso, aliás
extraordinario e quasi absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o
proponente deve fazel-a minuciosamente, carregando muito nas circumstancias
mais triviaes, repetindo os dictos, pisando e repisando as cousas, de modo que
o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.
Art. VI - Dos Perdigotos - Reserva-se o banco da frente para a emissão dos
perdigotos, salvo as occasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do
banco. Tambem podem emittir-se na plataforma de traz, indo o passageiro ao pé
do conductor, e a cara voltada para a rua.
Art. VII - Das Conversas - Quando duas pessoas, sentadas a distancia,
quizerem dizer alguma cousa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de
quinze ou vinte palavras, e, em todo o caso, sem allusões maliciosas,
principalmente se houver senhoras.
Art. VIII - Das Pessoas Com Morrinha - As pessoas que tiverem morrinha podem participar
dos bonds indirectamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para
outro. Será melhor que morem em rua por onde elles passem, porque então podem
vel-os mesmo da janella.
Art. IX - Da Passagem Às Senhoras - Quando alguma senhora entrar, deve o passageiro
da ponta levantar-se e dar passagem, não só porque é incommodo para elle ficar
sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má criação.
Art. X - Do Pagamento - Quando o passageiro estiver ao pé de um
conhecido, e, ao vir o conductor receber as passagens, notar que o conhecido
procura o dinheiro com certa vagareza ou difficuldade, deve immediatamente
pagar por elle: é evidente que, se elle quizesse pagar, teria tirado o dinheiro
mais depressa.
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