terça-feira, 29 de outubro de 2013

O BONDE DA HISTÓRIA

      Os bondes circularam em Porto Alegre até o ano de 1970. Fizeram parte do cotidianos da cidade por quase cem anos, muitas histórias ocorridas dentro dos bondes da Carris povoam as lembranças de nossos conterrâneos mais antigos. Como já comentamos anteriormente neste blog, no aniversário de 130 anos da Carris foi produzido um livro com contos escritos pelos usuários da companhia, lembrando de suas histórias. Iremos transcrever agora um destes contos. Trata-se do texto de Eduardo Costa Moraes. O título do conto é "O Bonde da História", nele o autor relembra algumas cenas comuns ocorridas durante os trajetos realizados pelos bondes. 

O Bonde da História

   "Naqueles distantes caminhos do passado, naqueles trilhos que só existem no lembrar, ainda faz barulho, range, solta faísca, ainda apita um bonde lotado de lembranças. Nele viaja um guri vindo lá do interior que se deslumbra com tudo o que vê pela janela.
     Passam parques, casa esquina, postes anúncio de brilhantina, passa até uma garotinha na janela de um carro que o olha com inveja.  O contador se agita querendo passar, com o dinheiro dobrado entre os dedos, indo lá no fundo buscar a passagem. Acotovela, pisa nos pés dos incautos e resmunga. De tão cheio o bonde parece que vai explodir. Todos se apertam, cuidado, vais descer o gordão, prendam a respiração.
   Passa, também bairros, ruas, feiras, igrejas, enfim, passa o mundo pela janelinha. O bonde tem portas dos dois lados. Onde fica a frente se tudo é duplo, e igual? Entra povo e desce povo. Na outra parada, tudo de novo. O rapaz dependurado numa das portas nem liga para o fiscal que pede, pausado, um passinho à frente, minha gente.
   Para e segue, espirra e patina, desce, sobe gente. Subitamente um clarão com uma chispa. Tudo para, silêncio. O fiscal pula fora e com uma vara que tirou do teto prende a roldana no cabo religando a corrente.
   Na subida começa a patinar de tão cheio e pesado. E agora, o que fazer? De novo o fiscal, vai e abre uma caixa abaixo. Qual ampulheta a areia cai por sobre o trilho e o bonde sobre a lomba, rangendo e reclamando. Um pingente grita aos outros: cuidado com o poste. Estou avisando!
  Apressado aquele homem salta ante da parada, quase se estatela no chão dando estranhos passos de ballet para não pisar no rabo do cão. Por pouco não derruba a velhinha que vendia pastéis na esquina. De repente um desavisado puxa a corda do marcador de passagens pensando ser a campainha para descer. Tem de aguentar a bronca do cobrador que insiste em cobrar as passagens marcadas por engano.
   Aquela senhora de chapéu de pluma temia em fazer cócegas nos narizes alheios. A mocinha rubiriza pela proximidade do garotão que a olha boquiaberto. Ah! A mala! Alguém entra com uma mala para aumentar a confusão. 
  Uma freada brusca! Todos se deslocam para frente, agarrando-se como podem. Alguém se assusta! A velhinha descabelou o senhor de cabelos lustrosos de brilhantina, coisa fina. O cabo da sombrinha daquela senhora quase engancha na orelha do guri a janela, que resmunga com ela. Lá no fundo um som abafado. Pedem respeito com o povo que não é gado. Mas a viagem segue até o seu destino.
  Fim da linha. O bonde quase vazio diminui a velocidade e para com um suspiro, ou seria um espirro? Um ruído de motor demonstra que ainda está vivo, pois tremem as suas entranhas, estará vivo? O condutor, também chamado de motorneiro, apanha o seu banquinho e pausadamente atravessa o corredor já vazio. 
  Em poucos instantes recomeça a viagem de volta, inverteu-se a direção. O que era frente agora é ré. Tudo aquilo que passou vai despassar. O caminho de volta também é passageiro.
   Porém o progresso também viajou. Desapareceram os trilhos. O pneu chegou. E o encanto acabou. Então este velho guri de cabelos já brancos lembrou de sua juventude que ficou naquele bonde de sua história. Era um tempo em que a cidade era uma Porto mais Alegre, menos agitada, mais contente e romântica, que raramente saía dos trilhos."

 

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